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Microsseguros: a qualificada hipossuficiência do consumidor
Não sou contra a instituição do sistema dos microsseguros; só fico entristecido dele ser um produto aparentemente enquadrável no Brasil. Este segmento só é afeto a países pobres e em desenvolvimento, cuja categoria, a segunda, é puro eufemismo para quem não admite as mazelas a sua volta.
Pretendemos, no discurso proselitista do nosso Governo, encabeçar a força de paz no Haiti, qual uma potência emergente nas Américas, enviando tropas e dinheiro público àquele país destruído – desde as malversações da colonização francesa, mas os cidadãos brasileiros continuarão instalados nas zonas de riscos nos morros do nosso vasto litoral, até as próximas chuvas.
Mesmo na cidade de São Paulo, a mais rica da América Latina, não muito distante do seu centro, há cidadãos amargando as desgraças das chuvas desde o Natal, sem solução alguma. As áreas de mananciais são ocupadas clandestinamente e sem providências. As pessoas vivem embaixo dos viadutos das principais cidades do Brasil.
As crianças continuam a fazer malabarismos nas esquinas ou vendendo balas e panos de prato, sob o olhar complacente de todos os governos, de todos os partidos, em todos os tempos – desde à abolição da escravatura, quando do dia para a noite todos os escravos foram jogados nas ruas das principais cidades do Brasil, sem eira e nem beira. Os políticos continuam a roubar impávidos e imunes a tudo. A sociedade silencia.
Há responsabilidade ético-social em todas essas atitudes, mas ela ainda não saiu dos textos do mundo acadêmico, o qual exalta a “dignidade da pessoa humana” e na qualidade de fator preponderante e conducente da responsabilidade civil pressuposta. Ora, até mesmo a responsabilidade fiscal dos governantes claudica neste país, quanto mais a responsabilidade ético-social não seria desmerecida e sequer aventada.
Voltando aos microsseguros, e na anunciada voracidade em penetrar nos estratos mais sensíveis da sociedade brasileira, devem ser lembrados determinados pressupostos essenciais na operação securitária e nem todos eles ainda resolvidos pelo mercado segurador nacional, no segmento tido regular.
Há Seguradora que aceita e emite apólice garantindo os riscos de furto e roubo – por exemplo e, sobrevindo o sinistro, tenta alegar a fortuitidade dos eventos e de modo a desvencilhar-se da obrigação de indenizar os segurados que compraram o seguro e que pagaram o prêmio respectivo. Não se trata, no caso, apenas de impropriedade técnica. Basta buscar jurisprudências no Superior Tribunal de Justiça e este caso aparece, recorrente. Outro exemplo: Seguradora inspeciona o local de risco, aceita-o, emite a apólice e depois nega o pagamento da indenização do sinistro de incêndio alegando tratar-se de imóvel localizado em “favela” e portanto excluído da cobertura daquele contrato de seguro que foi emitido por ela. O caso ocorreu em Santa Catarina e consta da jurisprudência do Tribunal de Justiça daquele Estado, ou seja, não bastasse ter perdido na primeira instância, a Seguradora recorreu da sentença condenatória. E os microsseguros? Bem, eles terão todo o beneplácito dos órgãos estatais de proteção aos consumidores, especialmente os Procons, não há a menor dúvida.
Também a sociedade civil organizada estará muito atenta: IDEC, Brasilcon e outras entidades do gênero. E as Seguradoras nacionais estão preparadas para a operação em larga escala neste segmento, observadas as suas especiais particularidades? Não estão ainda. Não se trata, o microsseguro, de seguro popular e tampouco de seguros tradicionais, apenas com o elemento “valores” estabelecido de forma reduzida em cada apólice ou bilhete.
Os produtos, as bases contratuais devem ser claras e transparentes, cujo patamar os seguros tradicionais ainda não alcançaram. É sabido que nem mesmo os segurados regulares lêm as suas apólices e tampouco os segurados dos microsseguros lerão as deles. Porisso as Seguradoras estarão isentas de responsabilidades? Certamente que não. E o Órgão Regulador? Este tem responsabilidade nos termos da Constituição Federal, artigo 37, a qual determina a “eficiência” da sua atuação, visando o bem comum da sociedade.
O microsseguro não pode ser apenas mais uma linha de produção das Seguradoras Brasileiras e visando o lucro imediato, ainda que legitimamente de acordo com os cânones do regime da livre iniciativa, também erigido pela Constituição Federal. Tem algo diferente nesta linha de comércio e ele não pode ser desprezado. Os microsseguros se envolvem com consumidor hipossuficiente de forma maximizada, muito além do consumidor regular de seguros. A febre que determinados bancos e outras financeiras tiveram recentemente no país e no tocante à concessão de crédito a idosos, aposentados e pessoas de baixa renda em geral, com o incentivo e larga publicidade realizada por personalidades públicas – artistas consagradas e paradoxalmente com alto poder aquisitivo, propiciou uma onda de superendividamento em pessoas fragilizadas, num país cujo Estado pouco concede e tudo cobra.
Na verdade, tal procedimento constituiu e assim se mantém em algo largamente reprovável, basicamente imoral e antiético. Com os resultados extremamente negativos que se seguiram, a mencionada febre da oferta já baixou bastante, para o bem dos incautos. Não poderá existir o mesmo movimento em relação ao sistema do microsseguros. Se há de fato graduação da boa-fé exigida na efetivação do contrato de seguro e ela parece existir, na medida em que o próprio Código Civil de 2002 a retrata no artigo 765 na condição de “a mais estrita boa-fé e veracidade”, deverá ser considerada de forma superlativa no âmbito da operação dos microsseguros. Há clamor da sociedade pela proteção do mais fraco e este princípio é pressuposto do Direito, na medida em que foi insculpido na Constituição Federal de 1988, até mesmo quando ela determinou a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, cujo mecanismo protetivo é inquestionável e inderrogável. O CDC comemora os seus 20 anos em 2010. Não há retrocesso que possa ser permitido pela Constituição Federal neste sentido.
O direito civil-constitucional é fundamentado com tal objetivo. A liberdade contratual, inclusive, é limitada sim, em face do interesse social maior representado neste tipo de seguro. Melhor seria se o Brasil já estivesse em outro patamar econômico-social a ponto de não necessitar dos microsseguros. A realidade é outra contudo, uma vez suprimido qualquer discurso retórico e proselitista que tem abundado neste país. Há um longo caminho a ser percorrido para alcançarmos o desenvolvimento.
E ele só será realidade mediante a educação do povo. Quero crer que as operações dos microsseguros serão positivas para o mercado segurador brasileiro e primordialmente para a sociedade brasileira de baixa renda. É momento de só falarmos verdades - promovendo-as também, ainda que elas sejam de difícil assimilação. Walter Polido. Texto publicado na Revista Opinião.Seg n.º 3, março de 2010, da Rocarati Editora [www.editoraroncarati.com.br/opiniao seg].